CINEMA ► Adaptar ou se basear? Eis uma boa questão…

Estava revendo, depois de décadas (literalmente), o filme “A Casa dos Espíritos”, bom filme baseado no primeiro (e para muitos o melhor) livro homônimo de Isabel Allende.

Bom filme mesmo. Filme curtido pela direção, sem pressa, feito com aparente prazer. Enredo denso de drama familiar em um Chile envolto em um processo de mudança social brecado por um violento golpe militar (como se qualquer golpe militar não fosse violento, foi mal…).

Uma experiência que Isabel viveu de perto, afinal seu pai, Salvador, foi o presidente democraticamente eleito pelo povo e derrubado e assassinado pelos militares chilenos.

Talvez um pouquinho mais de ritmo fosse do gosto de alguns, quem sabe mais destaque à sensibilidade das mulheres, uma maior imersão sobre os bastidores do golpe, talvez as violências cometidas pelo patrão contra suas empregadas…

Mas a história (alerta de spoiler!) do homem duro que se fez por si mesmo como senhor no campo, trata quase como um escravocrata a seus empregados, alia-se ao poder burguês, apoia um golpe militar que vitima a própria neta e que tem nas sensitivas mulheres da família comunicantes com pessoas do Além, prende a atenção até o fim.

Até porque tem no elenco performances dedicadas de um Jeremy Irons, uma Meryl Streep, uma Glenn Close, e nomes então emergentes como os de Antonio Banderas e Winona Ryder. Todos de muito bem para cima.

E estou para reler o livro, que também li há sei lá quantos anos. E o livro é bem melhor que o filme, mais completo – o que não chega a ser nenhuma novidade nesse processo de transposição de uma obra literária para a tela de cinema.

Mas há nisso demérito ao filme? Depende do ponto de vista…

De repente, depende da sinopse. A sinopse mais próxima do que eu poderia entender como “oficial” diz que o filme é “baseado” no livro de Isabel Allende, não “adaptado”.

E por que isso é relevante? Ora, porque são abordagens distintas a se fazer no momento da crítica.

Uma adaptação requer certo comprometimento com elementos básicos da obra de origem. Principalmente em relação a fatos históricos. No caso de uma produção “baseada”, não. Há, eu diria, quase que total liberdade de ação.

Lembro de críticas ao filme dizendo que “mutilou” a história do livro, cortou isso, juntou aquilo, etc e tal. Mas quando um filme é baseado ou inspirado em um livro (ou peça de teatro, musical…) ele não tem compromisso de ser fidedigno em relação à sua origem. Diferente de um filme com a pretensão de ser “adaptado”.

Neste caso específico, separando-se o filme de sua origem, considerando-o apenas uma peça cinematográfica, não há como negar-lhe valor. Agora, se você entender que seja fundamental seguir ipsis litteris a obra original, então, claro, será um crítico ferino. E, se for assim, dificilmente vai se satisfazer com qualquer filme nessas condições.

Por exemplo: “O Que é Isso Companheiro?” O best-seller no qual (depois soubemos) Fernando Gabeira reuniu uma série de ações durante o auge da repressão militar no Brasil em torno de um único personagem (no caso, ele mesmo) foi bem também nas telas de cinema. Porém eu me irritei bastante ao ver no filme, que lançara-se como documento, o embaixador norte-americano ser libertado na saída de uma partida entre Vasco e Flamengo no Maracanã. Mentira! Elbrick foi libertado junto aos torcedores que deixavam o estádio após um jogo entre Fluminense e Cruzeiro pelo Campeonato Brasileiro daquele ano de 1969, então Torneio Roberto Gomes Pedrosa. Tira os méritos do filme como obra cinematográfica? Acho que não. E como obra adaptada de um momento histórico? Totalmente, porque há a adulteração de um fato. E nem vou dizer que “contra fatos não há argumentos”…

Outro exemplo: “Mary Poppins”. Ora, o filme é aclamadíssimo por crítica e público (no qual me incluo com minha princesa!) através de – e por – diferentes gerações. Mas se considerarmos que ele devesse ser uma obra adaptada do primeiro romance infantil de Pamela Lyndon Travers, cara, não tem jeito, o filme é um verdadeiro estripador.

Isso porque (e lá vai spoiler para quem não leu e gostaria de ler o livro!) o filme pouco tem a ver com o livro além da presença de alguns personagens. Não à toa, a autora relutou anos a fio em aceitar que Disney levasse sua personagem para o cinema. Ao assistir ao filme, não me surpreenderia se Pamela desse uma de Nelson Rodrigues, que, convidado a opinar sobre uma “adaptação” de uma obra sua para o teatro, disparou: “Lembra vagamente um livro que escrevi…”

Do meu ponto de vista, acho legal separar as duas coisas: analisar um filme, nessa situação, primeiro como peça única e sem vínculo com nada a não ser o próprio conteúdo; depois, contextualizando, se for o caso, sua competência como elemento de transposição das páginas de um livro para as telas – principalmente se essa houver a intenção de fidedignidade.

Mesmo porque, que me lembre, apenas uma vez vi um filme que realmente achei que conseguiu fazer essa passagem quase que à altura do livro original. É muito raro isso acontecer. Derrubaríamos um monte de grandes filmes se fôssemos inflexíveis nessa questão.

O filme que considero uma das exceções à regra? “A Insustentável Leveza do Ser”. E veja que, à época do lançamento do filme de Philip Kaufman, o livro já era um daqueles “da minha vida” e Milan Kundera, o meu autor estrangeiro predileto. Então eu teria bons motivos para desconfiar do filme, certo? Certíssimo!

Porém, lá ainda no início, quando a protagonista feminina aparece pela primeira vez, de costas mergulhando de maiô em uma termas (aquelas piscinas públicas tão comuns em países do Leste Europeu, não as nossas casas de “saliência”), sai da água, entra no vestiário e depois sai de frente para a câmera, enxugando rapidamente o cabelo, mal consegui evitar que o pensamento saísse pela boca: “Teresa!” Isso porque não vi a estupenda Juliete Binoche, eu vi Tereza, por aqueles pequenos gestos iniciais. Do mesmo modo que não veria Daniel Day-Lewis, e sim Thomas, nem Lena Olin, mas Sabina… Achei realmente uma adaptação e das mais felizes, não apenas pela caracterização do elenco, mas pelo todo, pelo modo como Kaufman sintetizou em três horas um livro pesado daqueles. Apesar de Kundera, mesmo sendo consultor do filme, supostamente não ter ficado muito satisfeito com o resultado final e que até por isso não mais permitiria que seus livros fossem levados à tela. Informação que devemos considerar, porém sem deixar de levar em conta que um escritor não é um diretor de cinema. Você não faz pão com plantações de cana. Mas de todo modo o filho é dele, ainda que criado por outro.

(Aliás, qualquer dia espero escrever sobre Tereza & Tomas e de como pode ser insustentável a leveza do ser.)

E há casos em que essa migração entre planos artísticos tem o efeito contrário do habitual: a criatura superar o criador. Assim, por alto, sem pesquisar, lembro de “Grease”, a adocicada e juvenil “adaptação” para o cinema do barra-pesada musical homônimo da Broadway. Veja bem: o musical no teatro obteve estrondoso sucesso, mas o filme claramente o superou: ou alguém associa imediatamente “Grease – Nos Tempos da Brilhantina” à Broadway? Difícil, né?

Ou seja: não é porque existiu um Pelé que vamos desqualificar todos os demais jogadores por não serem completos como o Rei. Afinal, cada um à sua obra.

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