DE ALGUM LUGAR DO PASSADO ► Uma resenha fotojornalística da icônica obra de Milan Kundera “A Insustentável Leveza do Ser”

Segundo semestre de 1989

O livro “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, oferece ao leitor a oportunidade de refletir sobre um delicado problema que envolve o fotojornalismo em circunstâncias como a apresentada no texto.

A história se desenvolve à época da marcha soviética sobre a Tchecoslováquia. Isto é, primavera de 1968. A Primavera de Praga. Vamos abordar uma determinada trama do enredo.

A personagem Teresa trabalha em Praga como fotógrafa de uma revista quando as tropas soviéticas chegam à cidade. O povo tcheco se manifesta contra a interferência de Moscou e vários focos de resistência surgem por toda a parte.

Teresa não é insensível aos acontecimentos. Ele também quer defender sua pátria. Para isso, decide utilizar seu talento profissional, registrando com sua câmera a resistência popular. Essas fotos, como as de outros colegas dela, eram divulgadas por todo o mundo através das agências internacionais. Assim ela acreditava estar prestando uma dupla contribuição pessoal às manifestações de repúdio àquela invasão sofrida por seu país: denunciar ao mundo a agressão russa e divulgar a coragem do povo tcheco, que optava pelo perigo do confronto à vergonha da submissão.

Mas a divulgação dessas fotos se revela uma faca de dois gumes, pois não apenas as agências internacionais tiveram acesso a elas. Os russos não estavam alheios a isso. E faziam dessas fotos armas para repressão. Os fotógrafos presos durante manifestações populares tinham seu material de trabalho apreendido. Através de sucessivas ampliações dos filmes dessas fotos assim como das publicadas pelas agências tornava-se possível aos agentes invasores a identificação e detenção de um sem-número de manifestantes.

Quando – no livro em questão – Teresa descobre que suas fotos estão sendo responsáveis pela prisão de compatriotas, ela se desespera e entra em conflito íntimo com o paradoxo: a arma que serve para resistir é a mesma que serve para reprimir. Ela não sabia se tinha agido errado, de maneira imprudente e irresponsável, ou se fizera o que deveria ter feito – e as consequências eram riscos que precisavam ser corridos.

A discussão é polêmica e passa pelo compromisso social da atividade jornalística. Profissionalmente, Teresa não podia deixar escapar a oportunidade de registrar fatos que sabidamente estavam entrando para a História. Além disso, apesar das restrições impostas pelo regime vigente, não poderia se omitir em tais circunstâncias, quando o engajamento político era moralmente necessário em socorro a um povo agredido e violentado em seus direitos básicos de soberania e liberdade.

A situação não é fictícia. Ao contrário, é comumente real. Repete-se em todos os países onde governos ditatoriais e autoritários reprimem – violenta e arbitrariamente – qualquer manifestação de desagrado do regime estabelecido. E o papel do fotojornalismo, assim como o do jornalismo em geral, é muito delicado em tais circunstâncias. O repórter ainda tem a possibilidade de moldar seu texto de modo a não contribuir para a queda de resistentes, sem que isso represente perda de qualidade no conteúdo da informação. Mas o fotógrafo não dispõe desse recurso. Ele deve sempre ter em mente que a imagem de um manifestante em ação contra a ideologia governamental pode significar uma sentença de morte. E é inconcebível que essa responsabilidade seja ignorada.

Determinadas fotos tiradas nessas circunstâncias perpetuam-se através dos tempos. Retratam importantes momentos da luta humana por democracia e liberdade, sendo as ações flagradas tomadas como exemplos por gerações futuras.

A histórica foto tirada em Praga durante a invasão mostrando um cidadão tcheco frente a um tanque soviético, tentando interromper sua marcha, se tornou símbolo daquela resistência. Mais de vinte anos depois, um fato semelhante ocorreu em Pequim, capital da China. Durante a agressão das tropas do governo a estudantes e trabalhadores que ocupavam a Praça da Paz Celestial protestando contra o regime, um trabalhador parou na frente de uma coluna de tanques que avançava interrompendo a marcha dos tanques, tal qual ocorrera em Praga.

Se o manifestante chinês foi ou não influenciado pelo gesto anterior, não importa. O significativo é que o fato mais recente evocou imediatamente a lembrança do outro, o que prova como pode ser marcante uma foto em coberturas jornalísticas. E aí cabe ao profissional ter a sensibilidade necessária para captar esses momentos, avaliando as consequências que traz esse tipo de trabalho e agindo com sensatez suficiente para que, ponderando riscos e proveitos, não desperdice a oportunidade de contribuir – pessoal e profissionalmente – em favor de uma causa social. O que deve estar sempre entre os objetivos dos profissionais do jornalismo.

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PS. “A Insustentável Leveza do Ser” é outro de meus livros de cabeceira. Já à época do texto acadêmico eu tinha relido umas duas vezes. Foi a obra que me apresentou a Milan Kundera, que se tornaria meu autor estrangeiro predileto.

Na foto destacada, Juliette Binoche, que interpreta Teresa, ao lado de Daniel Day-Lewis, na ótima adaptação para o cinema dirigida por Philip Kaufman.

 

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